sexta-feira, 5 de maio de 2017

{um breviário de um medo}


Ela era brava.
Muitos assim a julgavam. 
Arrojada, demarcada, feroz. 
Mas, apesar da complexa teia de nervos ágeis e da fronte intrépida e resoluta com que esses tantos a distinguiam, escondia um medo descomedido. Um bizarro temor que tempestuosamente violava-lhe a lucidez e todo o ar do peito.  Angústia, vil e primitiva: ela temia a fugacidade.
Gota por gota, passageira sem corpo, sem afectos, a água lembrava-lhe que a efemeridade, a brevidade das coisas, estende a mão ao esquecimento. E acarinha-o, a seu colo, com tanta ternura como a de uma mãe. 

Temia tanto mais a brevidade dessa substância rarefeita que pouco se deixa tactear, fixar ou conhecer, do que qualquer outra circunstância impetuosa que lhe ameaçasse verdadeiramente o corpo. 
Ou a vida.

Uma noite, mesmo tendo pressentido no breu denso de um arvoredo os olhos de um animal medonho, precipitou-se ingenuamente por um caminho. Uns passos depois, assaltada por vigorosos latidos, veio a conhecer a severidade do medo físico. Em nenhum destes instantes, porém, daqueles ínfimos longos instantes em que atravessou a dureza temperamental do cão e o teve demasiado próximo, farejando-lhe a perna, igualou a aflição que sentia na evasão repentina das coisas.

O transitório, aquilo que não percorre o vagar, dedicando-se atenciosamente, abstrai-se facilmente no descuido. Por isso, perturbava-lhe tanto a indolente passagem da água na ribeira vizinha,   alheia aos cânticos grosseiros das rãs e à textura das pedras cinzentas, como a fuga repentina das chuvadas pelo interior do solo nos campos.

A  leviandade e a desatenção da água, na sua discreta imaterialidade, constituem uma oportunidade primorosa para aquilo que procuramos fazer desaparecer. Como num mergulho, é no silêncio leal desta cúmplice, impassível a súplicas e ao passar do tempo, que muitos escondem segredos, vergonhas ou arrependimentos. Lançam-lhe cadáveres e as armas que sabotaram vidas. Na água tudo permanecerá inconsequentemente ancorado.

E, por fim, esquecido.



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