quarta-feira, 31 de outubro de 2018

{imaterial}

Ao meu filhinho

Saberás um dia que a delicadeza daquilo que permanece para além da placitude tangível das substâncias corpóreas reluz, cintila pujante, por entre cada uma das nossas células. 
Saberás que o deslumbre que alumia as nossas porções atómicas, transmissões eléctricas e tecidos viscerais está no fulgor que o sublime traz ao músculo cardíaco e à tona da pele.
E assim saberás também um dia que é essa a potência que adoura esse teu infinito imenso, o deslumbre, tão mais perene do que o todo que encerra toda a matéria da matéria da física. 


sábado, 13 de outubro de 2018

{estrela morena}

É de prata a matéria do raio com que ele lampeja, certeiro, o embaraço da sombra. 
Em raio. Centelha. Cria o clarão.
Compositor da cor e do brilho, ele desenha o esplendor do rumo com que a luz afronta o vácuo do breu. E, num gesto que surge tão simples em suas mãos, esta estrela de mil fulgores, habitando o alto do seu longínquo céu, completa em luz o demorado vagar do escuro que se alonga, distante, por entre os nossos dedos.
Em mestria única, exclusiva da forja dos astros rei, ele encoraja cada feixe radiante, cada electromagnetismo, a dourar o sobressalto da negrura, fazendo nascer em graça cada contorno da sua visão.
Não conheço com clareza quais a ocupação, atributos e cargos divinos, mas não duvido que regar todos os dias o tecto estrelado e ocupar o luar, ora pela meia noite, ora pelo meio dia, é um dos mais absolutos ofício de um deus.


sábado, 6 de outubro de 2018






Fizemo-nos capitão, temerosos navegantes de um galeão de mil tormentos de mar. 
Existirá real a ilha do tesouro que vozes relatam o vislumbre ou serão também lendários os vibrantes rubis e esmeraldas, todo o ouro e diamantes daquele baú que alguém segredou sobreviver pelo fundo do mar?

quarta-feira, 20 de junho de 2018

{uma história de encantar}


Certa tarde conheceu uma mulher distinta de nome Esmeralda.
Gravitou por dias na translucidez e requinte desta palavra sem saber apontar sobriamente o motivo desse estranho arrebatamento.
 
"Esmeralda. Esmeralda!"
 
Cristalina e inteiramente luminescente, aquela melodia agitou-a num deslumbramento como jamais sentira por um vocábulo. 
Repetiu-a, incessável, na certeza de que aquela palavra resumia um sussurro mágico e tão hábil quanto uma musculada força cósmica que se atreve pela inóspita extensão sideral, encantando cada corpo celeste, cada porção da infinitude intergaláctica.
Veio a compreender, mais tarde, que será certamente agraciada a vida de quem traz consigo no nome a magnificência daquilo que a Terra esculpe no seu íntimo, na fertilidade do seu manto. E deteve-se na convicção de que bem-afortunados serão todos os que desde a nascença são reunidos à nobre família das gemas valiosas, singulares estruturas minerais que condensam a delicadeza e asserção com que uma fêmea pare uma cria
"Esmeralda...."
Certo dia conheceu uma mulher que encerrava em si os enigmáticos tons do verde pardacento que adquire o mar quando revolto. Jamais entenderá por inteiro o fascínio desse encontro, mas assim como só em determinados ambientes geológicos nascem gemas preciosas, certos fenómenos de encantar cabe unicamente ao nome ilustrar.




domingo, 20 de maio de 2018

{arco de Íris}

Eles traziam na singularidade dos seus encontros abalos sísmicos nas terras próximas e invulgares fenómenos celestes em que numerosos anéis de tons prateados cirandavam a lua cheia no firmamento. Traziam com eles a ternura da fruta madura e doce partilhada por entre os seus dedos e a dança harmoniosa das asas dos moinhos altos que cortam graciosamente o ar daquela serra que ela diz ser sua.  E, na profundeza daquela conexão tão única, traziam o arrebatamento de uma criança que explora sozinha uma praia deserta, recolhendo pedras, algas e conchinhas, fascinando-se em cada formato e cor que observa. 

Eles trariam bem mais consigo pelas mãos dadas, percorrendo tantas paisagens e lugares quantas as ondas que atrevem-se a trepar o areal da praia sempre cinzenta. Mas traziam também entre si uma sequiosa ânsia de uma qualquer coisa que não se sabe nomear e que instalava-se controversa e abrasiva entre ambos. Uma aspereza que lembrava a precipitação e a impertinência dos carrapatos que assaltam os vestidos de quem atravessa os campos secos ou a intransigência dos espinhos das roseiras bravas que cerram tantas vezes a passagem para um outro lugar. Na impulsiva urgência desta qualquer coisa sem nome, e na exigência dos trilhos por onde caminhavam, cada pele, a cada passo, foi sendo arranhada, arrancada, até encontrar a carne viva.

Não souberam apreender a frugalidade das ondas da praia cinzenta que alongam-se num movimento contínuo, ilimitado e incondicional. Caiem, amparam-se, abraçam-se e erguem-se novamente unidas, avançando destemidamente numa nova vaga sobre a praia.
Os alcáceres, firmes estruturas de abrigo, jamais são construídos sobre colinas hesitantes e demitentes. As suas torres e muralhas reservam ao tempo a consolidação das suas  alvenarias em pedra e a estabilização do terreno onde se fundam. Em pressa, todas as fortificações abatem e deixam desprotegidos quem por lá habita.




Depois de uma tosca despedida, ela reuniu a imensidão da fragilidade e a delicadeza das grandiosas-poucas-coisas que ele trazia-lhe ao mundo numa bolsa de linho bordada. Mais tarde, enterrou-a numa pequena gruta de uma praia fluvial virada a Sul.
Sem jamais entender a razão deste sentimento, desde cedo que temera que a morte o enlaçasse cedo demais ou que o fizesse sem ela tomar conhecimento. E isso inquietava-a. Assim, confiou a bolsa a Íris, leal mensageira dos deuses, pedindo-lhe que nas suas viagens entre o céu e a terra trouxesse-lhe notícias sobre ele.  

A bolsa agora de Íris é bordada ao centro com um grande coração encarnado majestosamente coroado por flores de diversas cores. O encarnado do sangue, daquilo que é visceral, num coração que lamenta terem juntos assistido a um arco-íris branco, lunar, sabendo não existir jamais lugar à partilha do vislumbre de um arco de sete cores.

domingo, 6 de maio de 2018

{levez} este dia da mãe


Ele diz que sou uma borboleta porque gosta muito de mim. Diz que queria ver-me voar em liberdade até à lua para que contasse o que de lá vi. 
Descreve as minhas asas com dedicada exactidão: 

"São pretas e vermelhas porque és diferente de todas as borboletas-mãe. Asas pretas e vermelhas nunca vi, mas imagino-te assim pois essas cores ficam-te muito bem."




Ele revê-me na leveza de um ser esvoaçante sem reparar na força que sinto falhar vezes demais ao abrir o par preto e vermelho de asas pelos dois.  

sábado, 5 de maio de 2018

{francisca}


Ela veio visitar-me. 
Trouxe vestidas flores estampadas num céu que enlaçou em redor do ventre.

terça-feira, 24 de abril de 2018

{previsão atmosférica para os próximos dias}

Ele disse-lhe precisar de tempo.
Ela, numa instantânea avaliação do seu estado meteorológico, sentiu uma precipitação impetuosa fustigá-la num fenómeno mais que pluvioso.
Saraiva, granizo, ventos fortes e frio. 
Muito frio.
Ela sentiu-se nevar e previu, nesse instante, a formação de várias tempestades no seu pequeno recorte de céu.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

{mau diabo}

O seu mau diabo convenceu-o de que não sabe dançar a dois.
Ele gosta de dar-lhe ouvidos.



Mas ao abraçá-la, naquela urgência tão corpórea de gestos sólidos e quentes, quase febris, embala-a ternamente.

"Depois do colo da minha mãe jamais alguém embalou-me na vida."

Ele balouça-a junto a seu peito, ritmando-a de um lado para o outro e, gentilmente, do outro para o outro num movimento contínuo e compassado. Num movimento de aninho e atenção.

"Acho que crês em demasia no teu mau diabo. Estamos a dançar, os dois."
Falhou ao seu mau diabo a lembrança de que até os beijos são uma dança acertada a dois e que, por entre o cheiro doce das suas respirações, nesses reflexos instintivos e demorados, ele sabe afinal dançar primorosamente em par.

"Só por hoje não permitirei sentir medo em perder esta harmonia e assumo que esta é a melhor melodia que temos juntos para dançar."

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

{insónias}



Certa vez, ainda criança, teve uma febre alta que lhe trouxe um par de visões medonhas e o sussurro da morte.

Desde então teme o silêncio.




Somente num ambiente barulhento sabe-se viva e por isso mudou-se para junto do mar. Percebeu que o som interrupto das ondas assenhorando-se do areal dissolve cada um desses sussurros.


"Sobrevivi à sua subtileza. Quando a morte quiser-me de novo terá de gritar alto por mim."




sexta-feira, 18 de agosto de 2017

{nortada}


Com os anos aprendeu a conviver com o presságio que a interrompia continuamente. Ela sabia que iria morrer sozinha. 
Por algum motivo que se impôs com uma inexplicável força no seu percurso, passou grande parte da sua vida sozinha. Habituou-se a passar dias a perder a conta sem falar e sem fixar o olhar no de alguém. 

Vivia tão só. 
Recordava com tremenda dor as mãos meigas de sua mãe mimarem-lhe a cara e da paixão de um antigo amante quando se encontravam no alpendre. 
Sabia que jamais teria iguais presenças na vida. E sabia ainda melhor que tudo o que se sente pertence ao real.







Certa tarde, ouviu estas suas duas vozes conversarem na pequena sala de arrumos. Trémula, abriu a porta expectante. Encontrou apenas, pela vidraça fosca do quarto, uma escura tempestade que se aproximava de si vinda do Norte. 

Nesse instante não aguentou mais tantas ausências. 
Sentiu uma folha amassar-se no peito e precisou de ar. 
Correu pelo campo até cair esgotada, sem fôlego e com dores agudas nas pernas e no ventre. 
Qualquer dor física torna-se insignificante diante de uma dor emocional.
Era Inverno. A noite caiu cedo e trouxe consigo mais frio e ainda mais chuva.

Precisou tanto de alguém nesse instante como terá precisado certamente durante toda a sua vida.  Não teve força ou talvez motivação para erguer-se sozinha. Permaneceu imóvel , por horas, enquanto sentia a pele queimar-se na terra húmida e na impetuosa tempestade. A queimadura do frio não compete com a que deixa a solidão pelo corpo. Essa dor é soberana; aquela de se ver só.

Ninguém deu pela sua falta. Jamais alguém a procurou. 
Foi encontrada por um pastor quando o sol primaverou semanas mais tarde.


Morreu sozinha, porque todos morremos. Mas a morte somente a tocou porque a solidão chamou decidida por ela.  E é disso, precisamente, que todos temos tanto medo afinal.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

{um breviário de um medo}


Ela era brava.
Muitos assim a julgavam. 
Arrojada, demarcada, feroz. 
Mas, apesar da complexa teia de nervos ágeis e da fronte intrépida e resoluta com que esses tantos a distinguiam, escondia um medo descomedido. Um bizarro temor que tempestuosamente violava-lhe a lucidez e todo o ar do peito.  Angústia, vil e primitiva: ela temia a fugacidade.
Gota por gota, passageira sem corpo, sem afectos, a água lembrava-lhe que a efemeridade, a brevidade das coisas, estende a mão ao esquecimento. E acarinha-o, a seu colo, com tanta ternura como a de uma mãe. 

Temia tanto mais a brevidade dessa substância rarefeita que pouco se deixa tactear, fixar ou conhecer, do que qualquer outra circunstância impetuosa que lhe ameaçasse verdadeiramente o corpo. 
Ou a vida.

Uma noite, mesmo tendo pressentido no breu denso de um arvoredo os olhos de um animal medonho, precipitou-se ingenuamente por um caminho. Uns passos depois, assaltada por vigorosos latidos, veio a conhecer a severidade do medo físico. Em nenhum destes instantes, porém, daqueles ínfimos longos instantes em que atravessou a dureza temperamental do cão e o teve demasiado próximo, farejando-lhe a perna, igualou a aflição que sentia na evasão repentina das coisas.

O transitório, aquilo que não percorre o vagar, dedicando-se atenciosamente, abstrai-se facilmente no descuido. Por isso, perturbava-lhe tanto a indolente passagem da água na ribeira vizinha,   alheia aos cânticos grosseiros das rãs e à textura das pedras cinzentas, como a fuga repentina das chuvadas pelo interior do solo nos campos.

A  leviandade e a desatenção da água, na sua discreta imaterialidade, constituem uma oportunidade primorosa para aquilo que procuramos fazer desaparecer. Como num mergulho, é no silêncio leal desta cúmplice, impassível a súplicas e ao passar do tempo, que muitos escondem segredos, vergonhas ou arrependimentos. Lançam-lhe cadáveres e as armas que sabotaram vidas. Na água tudo permanecerá inconsequentemente ancorado.

E, por fim, esquecido.



terça-feira, 18 de abril de 2017

ciano-verde {a minha avó menina}


Quando por fim esse teu corpo morreu-nos fechei-te as mãos em redor de um pedra turquesa. Confiei entre as tuas palmas transparentes, desengraçadas, uma pedrinha redonda, azul celeste, polida com o mesmo cuidado com que protegias-me as pequeninas mãos ao caminharmos pela rua.
Nesse dia, para ti por fim sereno, guardei a pedrinha no casulo dos teus dedos paralisados que dormitavam sobre um peito já demasiado anónimo. Aquele que tinha sido o teu peito, meu colo, mas onde já tanto faltavas.
 
Nós éramos duas meninas, avó.
Éramos duas meninas sem diferença na idade a não ser a da matéria. Meninas que percorriam contos sobre o mar espantando-se nas espirais dos búzios e nos reflexos das conchas molhadas ao Sol. Juntas, confidencialmente sozinhas, segredávamos por fim às nuvens e cantávamos, vivas, sem temer desafinar.
Conhecias-me bem.
 
Neste teu colar eu encontrava junto à tua respiração um outro sol, planetas e um par de estrelas em sua órbita.  Não cheguei a dize-lo, mas soubeste-o seguramente. Estas turquesas que usavas ao pescoço eram pontos luzentes de magia num mundo violento demais a ambas. Demasiado ríspido. Excessivamente alheado.Sobre as turquesas, as pedras de Hator e Ísis, deusas cujo colo são o trono real do céu que é afinal o ventre imenso de uma deusa mãe maior, são também amuleto de Yemoja, rainha africana dos oceanos. E é por certo aqui, avó, por entre estes quatro cantos do firmamento, sobre o infinito azul levemente esverdeado das tuas pedras mágicas, que sei que cuidas ainda das minhas mãos como fazias, num aflito aperto maternal, ao atravessarmos o Rossio e a Rua do Ouro.
Estas mãos, avó. Estas mãos hoje ainda tão pequeninas.  




{terra-musgo}

Com a audácia das plantas de meia luz que se determinam a vencer paredes, ela viveu longos anos com um desafino nos pulmões. Um piado grosseiro que não debilitava porém as gavinhas que a sustentavam viva.
Ainda jovem, alguém contou-lhe que a sua falta de saúde surgia por não permitir que o sol vigorasse no interior do peito. Depois disso, ela veio a distinguir com nitidez o cheiro escorregadiço a musgo quando suspirava e o amarelo frio do mofo que se estendia para além dos seus ossos.

Nunca entendeu que esse alguém se referia a uma crónica ausência de paixão em si.



Bebia então pela manhã uma forte infusão de hera-estrela para a sua bronquite. Enquanto sentia o calor da bebida estalar-lhe a pele, imaginava a planta verdejar e cercar o seu pequeno tórax, esperançando que a hera respirasse por um sol, como ela jamais conseguiria fazer.



quarta-feira, 23 de novembro de 2016

{estrelas de anis}

O amanhecer daquela casa pertencia ao seu sapatear e às faustosas lenga-lengas das aves no jardim.
Antes das criadas sacudirem as colchas pesadas pelas janelas do piso de cima e antes mesmo de cantarolarem pela cozinha lá em baixo, ela ocupava toda a casa.





Passo a passo.

No silêncio singular daquela hora ela gostava de sentir o seu peso no tabuado. De fazer ranger cada tábua e atravessar demoradamente cada degrau alcatifado das escadas.

Quando por fim o sol aquecia a casa, acordava o seu filhinho num sussurro:
"Vem comigo à despensa, meu amor" .
Sapateava pelo corredor das criadas apertando-o no seu peito. Esse conforto.
"Inspira fundo. Sente bem o aroma do anis e escuta este meu coração."
A despensa húmida das mercearias cheirava a especiarias doces como o cabelo do rapazinho quando dormiam abraçados pela noite.



"Filhinho, nunca afastes o encanto.
Todos os dias eu dou corda aos meus sapatos. É assim que desperto o meu."


segunda-feira, 31 de outubro de 2016

{electricidade}

- "Acreditas em fantasmas?
Ou finges não sentir aquela presença que se agita acima do soalho da sala e que se envolve ainda pela cama tapada com aquela manta grosseira de lã? Crês apenas no que a vista consegue fixar e somente naquilo que a temperatura do tacto identifica?"




- "Isto não te arrepia?
Eu sinto-a aqui. Uma atmosfera. E feminina.
Uma ocupação sem-corpo, como uma confissão das paredes."

- "Não sei se pressinto a tempestade que há uns dias se prepara no céu ou a presença da mulher que aqui habitou". 

Pouco importa. Terão certamente similar extravagância e a mesma intensidade emocional.






Continuo a percorrer cuidadosamente sozinha as divisões de sua casa. Sozinha.
Será tudo isto que sinto afinal a minha própria carga eléctrica destabilizar o ar?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

{vitamina C}


Desceu discreta, de pés finamente cautelosos, evitando pisar as madeixas mortas de cabelo negro, longamente muito escuras, que cobriam o frígido empedrado das escadas. Pelos últimos degraus, mesmo antes do patamar taciturno cujo singular enxadrezado em mármore rosa tem sido repetidamente violado, e por onde se faz a saída daquele sítio ermo para o mundo, ela viu-a. 
Estava sentada.  Violentamente enrolada sobre si. 
Levantou o rosto à sua passagem e olhou-a num envergonhado desalento. Tremia de frio, de fome e de terror.
Tremia de tudo.
Ela curvou-se perante a mulher e viu-lhe as rugas gritarem numa face demasiado seca por uma existência desamparada de vão de escada. Um vida desesperançada. 
De olhos baixos, aquela mulher embrulhada pediu-lhe desculpa pelos cabelos que alastram-se pelo chão. 

- Já não tenho forças para os limpar. 
Caiem-me. 
São sempre demasiados.



Ela baixou-se e perguntou-lhe pelo seu nome. 
- Nada. - Respondeu-lhe. 

A mulher fixou-a então perplexa e puxou-a para si num brusco aperto pela mão.
- Nádia... Desculpa.  Ninguém me pergunta pelo meu nome e eu já não o sei dizer.

- Precisas de alguma coisa, Nádia?

- Preciso de tangerinas.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

ribombar {um instante}

Uma repentina chuvada desanuvia a atmosfera grave e impaciente que há dias inquieta os nervos dos mais sensíveis. Majestosa, cessa inesperadamente cada ruído da cidade e distancia das ruas qualquer existência.
Naquele seu longo percurso, todos os dias demasiado acidentado, sobrepovoado, todos os dias demasiado veloz, ela encontra-se inteiramente só. Estática, comovida e de pés enregelados.
A robustez da instabilidade do ar e as massas abafadas desta tempestade de Maio testemunham mais um final na sua vida. A sua tia-avó morrera. Não chegara a conhecer como ansiava os filhinhos que dela nascerão.

O volume magistral de nuvens eléctricas que vê aproximar-se, sugerindo um gigantesco castelo errante, paralisam-na, permanecendo no limiar do deslumbramento e da apreensão. Experimenta o sublime naquilo que parece um cenário estudado de nítidos contornos, demasiado reais, duros e contrastados, e de uma luz muito fina e sedosa, filtrada pelos tons lilases do final de mais um dia.

Chove cada vez mais.
Cada vez mais.

E agora troveja.


Ela não corre, não se abriga. Entrega-se ao rigoroso peso da chuva que acomoda-se ao seu vestido de verão e às firmes gotas que aguilhoam-lhe prazerosamente a pele nua das pernas e dos braços. Sente a frescura da água na cara, pelas mãos, pelos cabelos.
Ali, ela e a tempestade. Nada mais.
A morte é também somente isto: um instante avassalador e irreproduzível, semelhante a um glorioso grito vivido de uma trovoada.